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  • Pedro dos Anjos

A retroatividade do § 5º do art. 171 do Código Penal - representação da vítima no estelionato

As leis híbridas (também chamadas de mistas) são aquelas legislações ou normas que possuem simultaneamente natureza penal material e processual. Grande dúvida pode surgir quanto à retroatividade de tais leis ou normas, isto é, se elas poderão mesmo alcançar atos e fatos pretéritos.


Já sabemos que as normas penais puramente materiais, desde que mais benéficas ao estado de liberdade do implicado, poderão ser, sim, empregadas retroativamente, surtindo efeitos para o passado, inclusive para desconstituir a coisa julgada. Mais ainda, está uníssono que a norma penal estritamente processual, aquela que se presta apenas a versar sobre aspectos procedimentais, não poderá ser aplicada retroativamente, imperando aqui o princípio da imediatidade.


Não são de causar espécie essas conclusões. Entretanto, quando se trata especificamente da lei penal híbrida, questionamentos podem então surgir acerca de sua retroatividade, especialmente no caso do recente parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal, adicionado por força da Lei Federal nº 13.964/2019 (Lei Anticrime).


Pois bem, esse novel parágrafo 5º operou substancial alteração na disciplina jurídica do crime de estelionato, passando a prever um regime de Ação Penal pública condicionada à representação da vítima para o ajuizamento da demanda criminal. Quer dizer, antes um delito cujo processamento em Juízo se dava pela Ação Penal pública incondicionada, bastando a oferta da denúncia pelo Ministério Público, agora dependerá da representação da vítima como verdadeira condição da Ação - salvo algumas exceções.


Está muito claro que a referida modificação repercutiu efeitos penais de ordem tanto processual como também material. Primeiro processual porque se volta a alteração para matéria substancialmente procedimental, qual seja, condição da Ação Penal e regime de ajuizamento; porém, também será material, na medida em que, ao se exigir a representação da vítima no estelionato, ficará limitado (ou atenuado) o poder de entregar punição do Estado, favorecendo o estado de liberdade de um sem-número de acusados.

Retomando a questão da retroatividade, tais leis ou normas híbridas, como está cediço, poderão ser empregadas retroativamente, mas não exatamente como as normas puramente penais, do ponto de vista material. Justamente por conter aspectos processuais, a retroatividade das leis penais mistas ficará limitada aos processos em andamento, ainda em trâmite, não podendo jamais atingir ou desfazer a coisa julgada.


Melhor dizendo, a lei penal híbrida, embora retroaja para os feitos em curso, em hipótese nenhuma retroagirá para alcançar feitos com decisão passada em julgado.


No caso do nosso já mencionado parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal, ainda que mais benéfica à situação do réu a nova regra, estabelecendo condição para a Ação e limitando o poder punitivo do Estado, por óbvio que esse dispositivo não retroagirá para atingir processos já findos, transitados em julgado, somente se aplicando àqueles que estão tramitando.


Não obstante isso, levantou-se na comunidade jurídica um grande debate sobre os exatos parâmetros da retroatividade do referido dispositivo.


Uma parcela posicionou-se para defender sua aplicação apenas para os casos em que não ainda tiver o Ministério Público oferecido a sua denúncia. Para essa corrente, uma vez já perfeitamente proposta a Ação Penal, instaurada regularmente a relação jurídico-processual, então não há mais de se cogitar da exigência de nova condição para propositura.


Outra parcela, porém, passou a defender a retroatividade do novo parágrafo para todas as Ações em curso, invariavelmente, de tal sorte que aos Magistrados caberia intimar a vítima para dela se obter sua representação, funcionando como condição de prosseguibilidade da Ação.


Chegando finalmente a questão aos Tribunais Superiores, entendeu o nosso Colendo Superior Tribunal de Justiça que a norma penal híbrida em comento deve retroagir em todas Ações Penais em curso, indiferentemente, servindo a representação do ofendido no estelionato como uma condição de prosseguibilidade da Ação Penal.

Dessarte, nesse caso intimada a vítima pelo Magistrado e não sendo tempestivamente apresentada sua representação em sede do processo instaurado, no prazo decadencial de trinta dias, então resultado lógico será a extinção da punibilidade do réu, com fundamento no artigo 107, inciso IV, do Código Penal.


Senão vejamos o entendimento exarado (destaque nosso):


HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI N. 13.964/2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/1995 POR ANALOGIA.


1. As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva.

2. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa.

3. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu.

4. A retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995 por analogia.

5. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão.

6. Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.964/2019, devendo ser a vítima intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do art. 91 da Lei n. 9.099/1995.


(STJ, HC nº 583.837/SC, 6ª Turma, Ministro Relator Sebastião Reis Júnior, julgado em 04 de agosto de 2020)


Por seu turno, o Colendo Supremo Tribunal Federal emitiu decisão em sentido diverso, entendendo ser aplicável a retroatividade apenas aos casos ainda não denunciados, sem a efetiva instauração da Ação Penal, filiando-se à primeira corrente. Ou seja, a representação da vítima no estelionato configuraria, seguramente, condição da Ação - e não uma condição de prosseguibilidade.


É o julgado do Pretório Excelso (destaque nosso):


ATIVIDADE NAS HIPÓTESES DE OFERECIMENTO DA DENÚNICA JÁ REALIZADO. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA LEGALIDADE QUE DIRECIONAM A INTERPRETAÇÃO DA DISCIPLINA LEGAL APLICÁVEL. ATO JURÍDICO PERFEITO QUE OBSTACULIZA A INTERRUPÇÃO DA AÇÃO. AUSÊNCIA DE NORMA ESPECIAL A PREVER A NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO SUPERVENIENTE. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS INDEFERIDO.


1. Excepcionalmente, em face da singularidade da matéria, e de sua relevância, bem como da multiplicidade de habeas corpus sobre o mesmo tema e a necessidade de sua definição pela PRIMEIRA TURMA, fica superada a Súmula 691 e conhecida a presente impetração.

2. Em face da natureza mista (penal/processual) da norma prevista no §5º do artigo 171 do Código Penal, sua aplicação retroativa será obrigatória em todas as hipóteses onde ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Ministério Público, independentemente do momento da prática da infração penal, nos termos do artigo 2º, do Código de Processo Penal, por tratar-se de verdadeira “condição de procedibilidade da ação penal”.

3. Inaplicável a retroatividade do §5º do artigo 171 do Código Penal, às hipóteses onde o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/19; uma vez que, naquele momento a norma processual em vigor definia a ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em juízo.

4. A nova legislação não prevê a manifestação da vítima como condição de prosseguibilidade quando já oferecida a denúncia pelo Ministério Público.

5. Inexistente, no caso concreto, de ilegalidade, constrangimento ilegal ou teratologia apta a justificar a excepcional concessão de Habeas Corpus. INDEFERIMENTO da ordem.


(STF, HC nº 187.341/SP, 1ª Turma, Ministro Relator Alexandre de Moraes, julgado em 13 de outubro de 2020)


Depois de firmado o posicionamento do Colendo Supremo Tribunal Federal, órgão jurisdicional máximo do País, ocorreu de também passar o Superior Tribunal de Justiça a limitar a retroação da exigência de representação da vítima apenas aos processos ainda não instaurados - vide HC nº 610.201/SP.

Com as devidas vênias ao entendimento do Pretório Excelso, mas não parece ser razoável impor limitação tão severa à retroação da mencionada norma, de maneira a aplicá-la somente aos casos ainda não denunciados. Isso, inclusive, desvirtua o propósito da norma, aquilo que quis o legislador, e não se coaduna, mais grave, com os ditames constitucionais de direitos e garantias dos acusados.


O que nos parece ser mais razoável não é exigir que a norma alteradora retroaja para tocar todo e qualquer processo penal, até mesmo os passados em julgado, empregando-se por instrumento a Revisão Criminal, e tampouco admitir que a retroação se limite aos casos ainda não denunciados, como postulou o Supremo Tribunal Federal. Nem um extremo e nem outro.


Em verdade, o que aparenta ser mais acertado é precisamente o entendimento que primeiro firmou a 6ª Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de se admitir a retroatividade da lei mista aos processos em curso, tudo no fim último de assegurar a melhor e mais ampla proteção ao estado de liberdade dos acusados.


No mesmo sentido, a excelente doutrina de Aury Lopes Jr.:


Outro exemplo é a nova disciplina da ação penal no crime de estelionato (art. 171, § 5º, do CP), trazido pela Lei nº 13.964/2019, que passa a ser - como regra, mas há exceções - um crime de ação penal pública condicionada a representação (antes era de ação penal pública incondicionada). Essa nova lei é mais benigna para o réu e deve retroagir, cabendo aos juízes e tribunais (pois ela se aplica em grau recursal) suspender o feito e intimar a vítima para que se manifeste. [...] Se a vítima representar no prazo, o feito prossegue. Se não representar (deixar passar o prazo) ou se manifestar expressamente no sentido de renunciar ao direito de representar, o feito será extinto, diante da extinção da punibilidade do art. 107, IV, do CP. [...] Entendeu assim a 1ª Turma do STF que tal norma não tem efeito retroativo, contrariando toda a doutrina e a jurisprudência consolidada (no sentido da retroatividade).1


Assiste razão ao ilustre doutrinador. É urgente a operação de uma reviravolta jurisprudencial - já há, inclusive, decisão em sentido contrário na 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. É inconteste que a retroatividade da lei penal mista deva atingir a todos os processos em curso, ainda em trâmite, e tal dinâmica não podia ser diferente com o parágrafo quinto do art. 171 do Código Penal.


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1 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021, pp. 127 e 128.


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